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Degustação : "Rosas de Sangue"

  • Foto do escritor: Spartacus Editora
    Spartacus Editora
  • 9 de abr. de 2020
  • 44 min de leitura



Confira a degustação de "Rosas de Sangue", livro do autor Philip Black:


Gritaria, loucura, multidão e muito rock’n roll. A música alcançava seus acordes mais potentes, as guitarras eram distorcidas ao máximo, e a bateria ditava o ritmo das canções. Era nada menos que o metal na plenitude de sua excelência. Cada expectador, embalado pelas drogas e música, curtia o momento a seu modo particular. E lá estava Friederic, como uma ave de rapina, a observar duas garotas que bebiam e riam como crianças que compartilhavam algum segredo. Uma delas pareceu retribuir seus olhares lascivos. Aproximou-se, Friederic quase gelou, tímido ao extremo, mas logo se esqueceu de tudo, quando a menina sem cerimônia puxou lhe e roubou um beijo. Antes que pudesse entender o que acontecia, a outra surgiu ao seu lado, agarrando-lhe pela cintura e o envolvendo num longo beijo de tirar o folego. Estou no paraíso, pensou o deslumbrado Friederic, que era disputado aos beijos por aquelas duas desconhecidas. Mas ele nem se importava com isso. Só queria saber de continuar revezando entre as duas bocas que lhe beijavam despudoradamente. De repente as duas desapareceram, deixando-o procurando. Em sua direção vinha caminhando Luna, aquela por quem sempre fora apaixonado desde a infância. Ela aproximou-se a passos lentos, seus cabelos negros agitando-se como que soprados pelo vento da noite. Era como se o tempo parasse quando ela estava perto. A música cessou, as luzes diminuíram, ele aproximou-se e os lábios quase se tocavam. No momento mais esperado, ela apenas disse:

— Filho, filho. Acorda, filho. Era apenas um sonho. Estava bom demais para ser verdade, lamentava-se ele. Aquele era o primeiro sonho bom que Friederic tinha em várias semanas. Todas as noites eram apenas pesadelos. O mais frequente deles, era ser perseguido por um lobo negro, e quando a fera estava bem próxima, dava um golpe com suas garras e então ele acordava. Levantou a cabeça, limpou a baba do canto da boca, esfregou os olhos. — Filho, você dormiu a missa inteira. O padre ficou o tempo todo apontando para nós dois. — Desculpa, mãe. Tenho trabalhado demais. — Esqueça, Friederic. E cá entre nós, hoje a missa estava chata, mesmo. Você vai para casa comigo ou vai sair depois? — Vou encontrar a Luna e o Marius. Vamos comemorar. — Aniversário de quem? — A Luna ganhou uma bolsa de estudos. No início do ano viaja para a Inglaterra. — Então vá, meu filho. Divirta-se e dê os parabéns à menina por mim. E tome cuidado com aquele seu amigo, eu não gosto dele. — Ta bom, mãe. E lá se foi Friederic a passos largos, com toda pressa para sair, como era de costume todas as vezes que acompanhava a mãe. E não era para menos. Sempre era alvo de alguma piadinha por algum membro mais fanático. Ele se veste como um louco, comentava um. Ele ouve a música dos demônios, acusava outro. Ele bebe sangue e dorme em cemitérios. Eu já vi um grupo de pessoas iguais a ele, alfinetava outro. Certa vez foi acusado de integrar um grupo de satanistas que haviam queimado uma igreja próxima. Chegou a ser apontado na rua, mas os verdadeiros criminosos foram presos e logo tudo foi esquecido. Desde sempre tivera predileção pelo estilo mais sombrio. Desde as roupas negras, até suas companhias. Era bastante incomodo, mas Friederic fazia questão de acompanhar sua mãe. Mais por uma questão de respeito à família que o acolheu. Friederic fora adotado ainda bebê pelo casal Francois e Genieve Pontmercy. O casal não podia ter filhos. Um dia Genieve atendeu no hospital onde trabalhava, uma mulher em trabalho de parto. Devido a uma infecção, a mulher morreu, mas a criança sobreviveu. Dias depois o recém-nascido foi mandado ao orfanato, mas Genieve se descobriu enamorada pela criança. Francois usou sua influência como promotor público, então eles adotaram legalmente o garoto, que passou a chamar-se Friederic. Três anos depois, Francois morreu de infarto. Bem longe da igreja, Friederic perambulava pelas ruas de Paris. Seu destino era o Pig Head, uma casa de shows onde eram realizados eventos, e aquela noite seria a Noite do Metal, onde várias bandas conhecidas realizariam suas apresentações. Enquanto planejava a noite, teve a nítida sensação de estar sendo seguido. Conhecia bem os caminhos e sabia onde estava, então decidiu apressar-se. O lugar não era muito seguro, com todos os ladrões e vagabundos que ali viviam. Algo parecido com passos foi captado por seus ouvidos, logo eram vozes. Poderiam ser apenas algumas pessoas indo para o mesmo lugar que ele. Decidiu tomar um atalho, adiantando mais o passo.

Confirmou que estava sendo seguido, o suspense tornando-se inconveniente e insuportável. Emendou na corrida, já em disparada. Encontrou-se apostando corrida com alguém que não conseguira identificar quem era, mas que parecia ser um homem pela silhueta. Correu tanto que parecia que cuspiria o coração a qualquer momento, até que entrou em uma rua mais escura, ofegante. Acho que despistei o desgraçado, vangloriou-se, ainda tentando recuperar o fôlego. Ele escondeu-se atrás de uma carcaça de um carro depenado, quando sentiu uma mão sob seu ombro. O coração gelou, as pernas tremeram, então virou-se, pronto para atacar ou defender-se. Ou correr. — Porra, Luna. Você quase me mata de susto — esbravejou Friederic, que por pouco não sujou as calças. — O que você está fazendo aqui? — Devia ver sua cara, Fred. Quem pensou que fosse? A menina quase não se continha. Tentava não rir, mas era inevitável. Friederic sabia que ela gostava de assustar as pessoas, mas não resistia àquele rostinho lindo que ela tinha. O sorriso que sempre conseguia acalmálo, por isso ela sempre abusava e aprontava com ele. — Isso mais parece ideia do Marius. E por falar nisso, onde está aquele filho da p… — FREEEEEEEEED. Um grito ao lado de seu ouvido fez suas ideias embaralharem a ponto de derrubá-lo. Mesmo quase surdo e com o coração batendo rápido pelo susto, sabia a dupla de amigos que tinha. Marius e Luna caiam na gargalhada, e mesmo ainda furioso, sabia que nada mudaria. Observava Luna mais uma vez. Aquele belo rosto, de uma beleza peculiar. Os olhos negros como a noite que convida ao pecado; os lábios carnudos que deviam ter o gosto da perdição. Ela tinha o dom de acalmar as feras, e parecia saber disso. — Marius! Babaca como sempre. — Relaxa, Fred. Você anda muito estressado — brincava Marius. — Você parecia uma galinha fugindo de um cachorro. — Até você, Luna? — censurava Friederic. — Não olhe para mim. A ideia foi dele — defendeu-se ela. — Ah, deixa para lá. Trouxeram meus acessórios? Marius abriu a mochila que trazia consigo e tirou um sobretudo de cor preta e um par de coturnos. Friederic retirou o blusão branco que vestia para acompanhar sua mãe nas missas. A peça servia apenas para ocultar a camisa preta que vestia sobre a pele. A estampa mostrava a figura mais tradicional e conhecida da morte, com sua foice em punho. A figura nefasta encontrava-se sentada num trono feito de ossos e crânios, onde sua atenção era disputada por um anjo e um demônio. Ele guardou com cuidado seu blusão branco e seus sapatos engraxados, calçou os coturnos e vestiu o sobretudo. Luna lhe trouxe um par de pulseiras cravadas de pregos e um cordão com pingente de pentagrama. Antes de chegarem ao Pig Head, já podiam ouvir de longe os acordes convidativos das músicas em execução do Black Santuary, uma banda do gênero black metal que tornava-se popular pelo estilo de apresentação dos músicos, abusando do estilo gótico, mesmo fazendo um som pesado. Friederic acompanhava a trajetória da banda desde o início, mas aquela noite eles estavam diferentes. Um visual cadavérico que por um instante fez Friederic jurar ter visto o vocalista com dentes pontiagudos, além de ostentarem uma aparência mais sombria. Excêntricos satanistas de fim de semana, pensou ele. Luna começara a bebedeira com algumas amigas. Umas eram só elogios para Marius, o galã mais cobiçado. Com cabelos negros na altura dos ombros, porte de atleta e os olhos verdes ( lentes, na verdade seus olhos eram castanhos). Ele não tinha problemas em conquistar quem lhe interessasse. Extrovertido e eloquente, mas o que usava como arma de sedução era o fato de encarnar o perfeito cavalheiro, gentil atencioso e muito bem educado. Fazia qualquer garota sentir se única e especial, mas como nada e perfeito, quando bebia demais tornava se o mais xucro e arredio dos animais, uma espécie de adaptação grotesca de um D. Juan às avessas. Friederic já era mais simples. Com seus cabelos encaracolados, olhos negros e altura mediana, não fazia muito sucesso entre as mulheres. Ostentador de um corpo delgado e sem músculos, possuía um senso de humor ácido e um sarcasmo venenoso. Não era muito apreciado pela maioria. Sabia disso, e com o tempo parou de se importar. Marius queria ser aceito e adorado por todos, Friederic queria que todos fossem para o inferno. Luna observava os dois amigos com o olhar crítico de quem faz uma difícil escolha. Desde sempre nutria uma paixão secreta por Friederic, embora nunca houvesse revelado a ninguém. Ele também caía de amores por ela, mas aparentemente ambos estavam fadados a amar sozinhos se dependesse de Marius, que arrastava suas asas para Luna sempre que possível, mesmo sendo negado todas às vezes. A noite ía avançando e os ânimos ficando mais exaltados. Uma confusão começou e logo tornou-se uma briga generalizada. Friederic e Luna saíram de cena para não apanhar, Marius encontrava-se no meio da confusão, Luna desapareceu, enquanto Friederic, pegava uma cerveja. Mais uma noite como as outras. O Pig Head, ou como alguns chamavam, Flagelo da Sociedade, pelo fato de ser um espaço frequentado por viciados, bêbados, traficantes e muitos daqueles tipos renegados da sociedade. Enquanto Friederic caminhava despretensiosamente pelos recantos do lugar, passou por um grupo de pessoas que se drogavam indiscriminadamente, reconhecendo Serafine, alguém que há muito tempo não tinha notícia. — Serafine, Serafine — gritou ele. — Friederic, quanto tempo não o vejo. Sabia que encontraria você aqui. — Pensei que você tivesse parado com isso. — Referia-se a um baseado que ela trazia consigo — Será que você não aprendeu a lição desde a última vez? — Friederic, que fofo. Sempre preocupado comigo. Mesmo depois de tantas coisas que eu disse, que eu fiz, você ainda tenta me… Nem bem conseguiu tecer mais uma palavra e vomitou como se estivesse em um filme barato de exorcismo. Não conseguindo mais manterse de pé, agachou e a cena ficou ainda mais deprimente. Enquanto segurava sua cabeça e limpava sua boca, Friederic percebia com grande pesar, que aquela que ali estava, nem de longe lembrava a Serafine que ele conhecia. Em seus tempos áureos, a menina era dona de uma beleza quase divina. Uma pele clara como um dia de verão, cabelos compridos e loiros, um par de olhos verdes que combinado a um sorriso largo com uma boca carnuda, a faziam povoar os sonhos eróticos de todos a sua volta. Sempre a mais bela de todas nos tempos de colégio. Disputada por todos os homens e mulheres,

sabia aproveitar todas as formas de prazer que lhe fossem atraentes, pois sempre fora livre de preconceitos. Na adolescência provou maconha pela primeira vez em uma festa e dali em diante declinou. Sempre teve uma predileção pelos tipos marginais para relacionamentos. Isso explica o fato de ter se envolvido com Marius. — Acho que já estou melhor, Fred. — Nada disso. Eu vou te levar pra casa e nada de fugir como fez da última vez. — Agora não. Tenho que encontrar alguém. — Quem é o delinquente? — Ah, que bonitinho. Sempre tentando me proteger. Vim encontrar meu namorado. — Você vem comigo. Quem é ele? Eu digo que você foi para casa. — É um dos caras do Black Santuary. Vou terminar com ele hoje. — Deixe-o para lá e me deixe cuidar de você, vai. — Tentou recorrer ao apelo sentimental, mas a menina estava irredutível. — Pare, Fred. Não faz assim. Eu não mereço esse carinho todo que você tem por mim. Eu tenho pouco tempo, não sei se vou sobreviver essa noite, mas antes de ir, quero dizer que desejo toda a felicidade do mundo pra você. — Para de putaria, Serafine. Vem logo. — Não dá mais tempo. Preciso ir agora. — Aproximou os lábios dos dele, e deu-lhe um beijo de tirar o fôlego. — Não diga nada, Friederic. Apenas saiba que você é muito especial para mim, e não deixe que digam o contrário.

— Fica comigo, Serafine. — É uma pena não termos dado certo, mas nossos caminhos são diferentes. Seu futuro pode trazer muita dor e sofrimento, mas se sobreviver, será muito poderoso. Na hora certa você vai saber. — Deu-lhe mais um beijo. Um pouco mais rápido que o primeiro, mas com a mesma intensidade. — Não sofra muito por mim, apenas queria ver você pela última vez. Afastou-se e rapidamente sumiu na multidão. Não era a primeira vez que Serafine o beijava. Ela gostava de provar todas as bocas que podia. Nem Luna, em outro momento, escapara de sua volúpia incontrolável. Mas dessa vez aquele beijo tinha um gosto diferente, e nem era por causa do vômito ou do excesso de bebida, mas algo como desespero, despedida. Mas o que ela queria dizer com futuro de dor e sofrimento? Serafine sempre fora cheia dos enigmas. Desde nova tinha lá seus momentos mediúnicos. Friederic pegou mais uma cerveja e juntou-se a Luna e Marius. Embora percebesse o amigo distante e pensativo, Luna tentou descobrir alguma coisa, mas não entendia porque partilhava por algum motivo aquela angústia que devorava Friederic por dentro. A noite avançava e a madrugada aos poucos ia drenando o ânimo dos frequentadores do infecto chiqueiro conhecido como Pig Head. Marius somava os resultados da noite: oito garotas, um olho roxo e muita bebida. Luna ainda tentava, a todo custo, conseguir arrancar a verdade de Friederic. O lugar aos poucos foi ficando vazio e lá se foi mais uma noite. No dia seguinte, Friederic cumpria sua rotina de trabalho na cafeteria e confeitaria La Verrie. Como balconista, ele ouvia a maioria das histórias que as pessoas contavam, ainda mais numa manhã pós-balada. Ao contrário da maioria, ele gostava da segunda-feira, pois ouvia as maiores asneiras dos bêbados de fim de madrugada. Certa vez uma garota dizia a outra que foi seduzida por um belo vampiro de olhos vermelhos. Um sujeito ainda embriagado jurava ter sido perseguido por um cão enorme de olhos amarelos. Tantas loucuras tornavam seu trabalho mais divertido. Enquanto atendia aos famintos das primeiras horas da manhã, o balconista das orelhas-afiadas ouvia duas garotas narrando aventuras com outras garotas. Sua atenção é desviada abruptamente quando adentra pela cafeteria, Marius, acompanhado de um sujeito carrancudo e mal-encarado, com cara de torturador nazista. Vestia-se socialmente, aparentando estar tenso e malhumorado. Puta que pariu, Marius! Que merda você fez dessa vez? Imaginava ele. — Friederic Pontmercy? — o sujeito inquiriu. — Sim — respondeu desconfiado. — Em que posso ajudar? — Detetive Samael Baptiste. Homicídios. Você tem um minuto? Friederic aproximou-se, sentou em uma mesa onde Marius estava e o detetive começou: — Você conhece Serafine Deverreaux? — Sim. É minha amiga. — Serafine Deverreaux foi encontrada morta essa manhã, nos fundos da casa de shows conhecida como Pig Head. Seu amigo disse que vocês são frequentadores do lugar e eram os amigos mais próximos da vítima. Friederic começou a desesperar-se, a ponto de precisar ser controlado por Marius. Ele ficava repetindo que não acreditava no que ouvia, balbuciando feito um louco o nome da falecida. O detetive conversou mais uma vez com Marius e decidiu interrogar Friederic no fim do dia, na delegacia. Entregou-lhe um cartão com seu número de telefone e saiu.

Marius tentava disfarçar, mas também sofria. Ele vira quando retiraram o corpo de Serafine da lixeira dos fundos do Pig Head. Estava indo tomar café no La Verrie, quando viu uma movimentação próxima. Foi quando chegou mais perto. — Como foi isso, cara? – indagou Friederic, tentando esconder as lágrimas. — Parece que bateram muito nela. Quebraram o pescoço. Algo do tipo. — A mãe dela já sabe? — Acho que não. — E a Luna? — Já deve estar sabendo. Foi mal ter trazido o tira aqui, cara. Ele me viu perto do corpo e ficou me fazendo um monte de perguntas. — Deixa para lá. — A Serafine disse se estava encrencada? — Nada demais. Só trocamos algumas palavras. — Se cuida, cara. Ao fim do dia Friederic foi procurar o detetive Samael Baptiste em sua sala. Começou fazendo perguntas de praxe, do tipo: onde morava, com quem, onde trabalhava. — Soube que você mantinha um relacionamento muito próximo com a vítima. Desde quando a conhecia? — O detetive começou a ser mais objetivo. — Já faz muitos anos. Fomos criados juntos. Éramos muitos próximos.

— Já chegaram a ter algum relacionamento mais íntimo? — Ela namorou meu amigo há pouco tempo, mas nosso relacionamento era só de amizade. — Você sabe dizer se a vítima estava drogada ou embriagada na noite de sua morte? — Ela estava bêbada. Vomitou em mim, eu a socorri. Apenas trocamos algumas palavras e ela se foi. — Você costuma usar drogas, Friederic Pontmercy? — Onde quer chegar, detetive? — Eu faço as perguntas aqui, garoto. Serafine Deverreaux foi presa duas vezes por vandalismo e posse de drogas. E você foi o último a vê-la com vida. O detetive pressionava o quanto podia, fazendo jogos psicológicos com Friederic. Tentava fazê-lo vacilar nas palavras, até que descobriu a informação que finalmente começaria a dar um rumo às investigações: o envolvimento da vítima com o músico da banda. Agora restaria saber quem ela encontraria aquela noite. A porta abriu-se e um policial o chamou. Momentos depois ele voltou e cordialmente dispensou Friederic, entregando-lhe mais um cartão com seu número pessoal e pedindo que o procurasse, caso lembrasse mais alguma coisa. No necrotério ali próximo, o detetive adentrou às salas, acompanhado do legista. O médico estava tenso e falante enquanto entravam em uma das salas.

— Muito bem, Jonas, eu estava no meio de um interrogatório. O que é tão importante? — Você precisa ver isso, detetive. O médico descobriu o cadáver sob a mesa. Era o de Serafine, com todos os hematomas, pescoço quebrado, e algo característico que chamou a atenção do detetive. — Mordida de vampiro. Quem mais sabe disso, Jonas? — Eu, você e o perito Valjean. Mas não se preocupe. Ele sabe com o tipo de coisa que lidamos. Oficialmente ela foi morta por algum fanático religioso. — Eles já não atacavam há muito tempo. — Pois é, detetive. Mas o mais impressionante é isto aqui. — Jogou sobre o cadáver da bela Serafine um líquido negro e em instantes começou a subir das feridas da vítima uma espécie de fumaça. — O que acha disso? — Então ela estava… — Se transformando quando a mataram. Seja lá quem a mordeu, esperou o processo começar para começar a matá-la. Foi torturada até a morte. Só não posso precisar se o mesmo que a mordeu foi o mesmo que fez isso. — Algum caçador mercenário? — Acho pouco provável. Um novato, talvez. Mas seja lá quem for, a única coisa que sei, Samael, é que se os Filhos de Belial voltarem a caçar por aí, vai acontecer outra guerra de sangue. — Lá vem você de novo, Jonas. Não vamos ter outra guerra de sangue, pode ficar tranquilo. Eu vou encontrar o responsável por isso. Esse é o meu trabalho. Por enquanto vamos manter isso em segredo. Ao que me diz respeito, ela foi mais uma infeliz, vítima da histeria religiosa. Ela mexia com bruxaria, Jonas. Natural que algum fanático religioso tentasse livrá-la do demônio. — Sabemos que não foi assim. Já é o terceiro caso só esse mês. Eles estão voltando a caçar inocentes de novo, Samael. Desculpe se estou sendo inconveniente. Eu sei que você escolheu uma vida nova, longe de tudo, mas você não pode negar sua natureza. Antes eram os lobos, agora são os vampiros que estão fora de controle. — Você tem razão, Jonas. — Eu sei que… — Está sendo inconveniente. Deu de calcanhares, bateu a porta e deixou o médico falando sozinho. Há muito tempo Jonas era apenas o jovem médico que assumira o posto de legista. Certa noite foi levado a sua mesa um jovem para ser dissecado. Tal foi sua surpresa quando o jovem levantou da mesa e começou a persegui-lo. Conseguiu alcançá-lo e tentou cravar as presas em seu pescoço. Ele anda conseguiu desvencilhar-se, logo em seguida um cão de tamanho descomunal, com olhos amarelos como a lua invadiu o hospital, e fez o jovem em pedaços. Com a mesma rapidez que surgiu, a fera desapareceu. Um homem chegou instantes depois e explicou ao médico que tremia feito vara-verde, tudo o que acontecera. Era Samael Baptiste, que recrutou o médico para ser um dos muitos agentes que trabalham para os lobisomens. No dia seguinte, aconteceu o enterro da bela Serafine, que fora marcado para às quatorze horas. Luna chorava como uma criança diante do caixão da amiga. Marius a todo custo teimava em segurar uma lágrima que tentava escorrer rosto abaixo, mas seu sofrimento era visível. Genieve e Friederic tentavam consolar Elisa Deverreaux, mãe de Serafine. A mulher estava transtornada, dizendo querer descer ao túmulo junto com sua única filha. Ora chorava, ora contemplava o cadáver da menina. Um sofrimento indescritível devorava sua alma por dentro. Alguns amigos e vizinhos vieram prestar as últimas homenagens fúnebres. Por um segundo Friederic partilhou do mesmo sentimento de Elisa: descer ao túmulo junto com Serafine. Mas agora era tarde demais. Pelo menos conseguira dar um último adeus, embora ainda não se conformasse. Sua morte violenta e sem explicação começava a aguçar seus instintos. Mesmo assim, agora era tarde demais. A mais bela de todas, amor da vida de todos e que dizia que todos eram dela, mas ela não era de ninguém, fora reduzida a um cadáver vazio, sem alma ou sentimentos. Friederic agora começaria a aprender na prática que a morte e o fim são inevitáveis quando o ser humano descobre-se vivo.


Haviam se passado dois meses. Serafine ainda permanecia morta, e Friederic aparentemente descera ao submundo com a alma da pobre criatura que perecera tão cruelmente. Cada um carregava o peso do luto de seu jeito peculiar: Marius continuava bebendo como sempre; Luna ainda sofria muito, mas já conseguira aceitar sua morte. Ainda mais pelo fato da pessoa em questão não ser um exemplo de comportamento; Elisa Deverreaux mandara rezar uma missa em homenagem a filha. Todos os que estavam presentes no enterro compareceram, exceto Friederic, que permanecia alheio ao mundo, absorto em seus pensamentos e sempre sofrendo pelos cantos. Ela não podia ter morrido agora. Não devia ter me abandonado. Ela não tinha esse direito, lamentava-se ele. Conhecera Serafine na pré-escola, e tornaram-se então, uma dupla inseparável. Algum tempo depois conheceram Luna e Marius. A amizade crescia a medida que eles cresciam juntos. Eram chamados em alguns lugares de “Quarteto fazedor de merda’’, embora fosse sempre Marius que aprontasse todas as confusões. Algumas semanas antes do fatídico acontecimento, Marius e Serafine tiveram um tórrido romance. Sexo, drogas e rock’n roll. Para ser mais exato, esse era o resumo da conturbada relação da dupla. Entre bebedeiras, escândalos e uma prisão por porte de drogas, cadaq uma das partes optou em seguir seu rumo. Logo depois, Serafine conheceu um músico de uma banda conhecida entre os fãs do gênero metal. Seu nome era Gerard. Após uma mudança radical na formação da banda, o até então guitarrista assumiu os vocais do Black Santuary, elevando a banda à um novo estilo. Ainda mais sombrio e mórbido do que antes. Outrora, as apresentações utilizavam efeitos pirotécnicos, vestimenta negra e maquiagem temática, que dava contorno ao rosto. Após a nova formação, Gerard, no comando da banda, começava as apresentações encenando uma espécie de espetáculo que chamava de “Teatro do inferno.’’ Os integrantes vestiam túnicas negras, subiam ao palco, retiravam o capuz no qual era possível vislumbrar seus rostos pálidos como cadáveres. Cada um assumia seu respectivo instrumento e começavam a tocar. O vocalista subia por último, trazendo uma garota pelas mãos. Ela se debatia, pedia socorro, tentava fugir, o público ia ao delírio. Com um movimento mais brusco, Gerard arrancava o vestido da moça, deixando então seus seios à mostra e levando os expectadores ao êxtase, pois jamais haviam vislumbrado algo parecido em uma apresentação musical. A música continuava, a moça ainda gritava, um tapa fazia com que se calasse. Uma mordida no pescoço fazia seu sangue escorrer por seu corpo nu. Ela caía no palco em seu sono profundo, embalado pela morte. Com a boca cheia de sangue, o vocalista contemplava seus fãs, a massa adoradora daquele circo de horrores no qual se fazia as apresentações da banda. Parava no limite do palco, sendo reverenciado como um deus, e gostava disso. Os instrumentos interrompiam seu alarde. Ele erguia os braços e gritava o nome da banda a plenos pulmões. Bateria, guitarra e baixo misturavam-se logo ao som dos gritos histéricos da legião de adoradores do Black Santuary. Serafine envolvera-se com o cantor e desapareceu da presença de todos. Só voltou a ser vista na noite de sua morte. Friederic não sabia da história toda. Era apenas mais um dos fãs da banda. Quando foi interrogado pelo detetive, apenas disse que Serafine ia encontrar o namorado naquela noite, mas ele sequer sabia quem era o integrante. Ainda envolto no luto pela morte da amiga, procurava levar sua vida da melhor forma possível. Um dia, trabalhava no turno da manhã na cafeteria La Verrie, quando Elisa Deverreaux, mãe de Serafine, entrou e instalou-se em uma das mesas. Ela parecia atordoada, como se estivesse com medo. Seu rosto transparecia uma expressão de desconfiança, observando tudo a sua volta. Ninguém que entrava ou saía escapava ao seu olhar paranóico. — Bom dia, senhora Deverreaux. — Ai! Você me assustou, Friederic — bradou a mulher, que parecia desperta de um transe. — Desculpe! Não foi minha intenção. — Esqueça, rapaz. Esqueça. Eu posso saber por que o senhor não foi a missa que eu mandei rezar para minha filha? — É que... eu... — Ele não sabia o que dizer. Fora pego de surpresa. — Deixa isso pra lá, Friederic. Eu sei que minha filha gostava muito de você, e sei de sua parte, o quanto sente falta dela. — Queria que ela estivesse aqui. — Acho que todos gostaríamos. Finalmente o bom Deus concedeu o descanso eterno à alma da minha filha. — Exatamente. Com licença, senhora Deverreaux. Agora vou voltar aos… — Friederic, você sabe que minha filha foi assassinada, não sabe? — Foi realmente uma tragédia. A polícia disse que… — Esqueça a polícia. Eles não sabem de nada. Minha filha foi assassinada porque sabia demais. — Senhora Deverreaux, eu preciso… — Apenas me escute, Friederic! Eu estou em perigo. A mulher estava quase à beira de um ataque de nervos. Grudou no braço de Friederic e não o soltava por nada. Ele tentava desvencilhar-se, mas a criatura neurótica continuava a insistir que sua filha fora vítima de alguma conspiração louca. Todos sabiam que Elisa sempre fora uma religiosa para lá de fanática. Friederic já estava perdendo a paciência com a tagarelice da mulher. — Friederic, você tem a menor ideia do que está acontecendo. — Eu sei, mas eu preciso voltar ao trabalho agora, senhora De… — Cale-se, rapaz. Você não sabe. Ele eles são perigosos e eu sei que serei a próxima. — Mas senhora De… — Cala a boca, Friederic. Você não está me deixando falar. — Mas senhora… — Cale- se Friederic — repetiu. — E além disso… — CARALHO. Ela perdeu a fala. Friederic perdera o controle com o falatório da criatura. Finalmente calou-se, mas agora ele não queria dizer mais nada. — Desculpe, senhora Deverreaux. Eu não tinha o direito. — A culpa é minha. Eu não deveria vir aborrecê-lo com meus problemas. Afinal, você não tem culpa de nada, pobre garoto. — O que a senhora falava da Serafine mesmo? — Minha filha foi assassinada. — A senhora tem certeza disso? — Claro que sim. Ela morreu porque sabia demais. O maior erro dela foi ter se envolvido com aquele demônio. — Quem? — Não posso dizer agora. Eles estão por toda parte. Eles vão me matar se eu disser alguma coisa. — Não se preocupe. Não vou deixar ninguém machucar a senhora. — Ah, Friederic. Sempre engraçado. Não fale besteiras. Filha da puta. Um pensamento passou pela sua cabeça, mas ele preferiu continuar ouvindo os disparates daquela mulher esquisita. Permanecia dizendo que estava sendo perseguida, mas não dizia por quem, ou o que a perseguia. Falou sobre organizações, cultos religiosos, mas Friederic tentava ignorar os devaneios da mulher que vez ou outra parava seu discurso por pensar estar sendo observada pelos frequentadores do La Verrie. — Eu tenho uma coisa pra você, mas não vou dá-lo aqui. Outra hora nos vemos, Friederic. — Tudo bem, senhora Deverreaux. — Ele já se via ansioso por livrarse da mulher. Alguns dias depois, Friederic e Marius conversavam enquanto tomavam uma cerveja num bar próximo, ao fim do dia de trabalho. Marius segurava a barriga de tanto rir, lembrando-se da mãe de Serafine com mania de perseguição. Elisa sempre foi do tipo “doidona de pedra’’, mas até ela tinha seus limites. Ainda mais com Friederic tentando imitar os trejeitos e as palavras delas enquanto dizia que eles estavam por toda a parte. Até agora eles não sabiam quem seriam eles. — Fred, não olha agora, mas te dou uma grana se conseguir adivinhar quem esta passando pelo outro lado da rua nesse momento. — Puta que pariu — resmungou Friederic. — FRIEDERIC — gritou Elisa do outro lado da rua. — Mas que merda. Ainda fica me gritando. Agora eu que estou ficando com mania de perseguição. Elisa começou a aproximar-se e Friederic pensou em mil maneiras de evitar o encontro. Se fosse um pouco menor, esconderia-se debaixo da mesa ou correria para o banheiro. Mas agora já era tarde. Enquanto aproximavase, Friederic tentava segurar Marius pelos braços. Elisa sentou-se à mesa sem a menor cerimônia. — Espero não estar atrapalhando. — Que nada, senhora Deverreaux, eu já estava de saída — disse Marius, quase não controlando mais o riso. — Preciso resolver umas coisas e não quero atrapalhar. Enquanto afastava-se, Marius fazia gestos obscenos simulando atos sexuais, apontando para a mulher e rindo da cara de raiva de Friederic. — Acho que seu amigo ficou incomodado comigo. — Que nada. Ele ficou envergonhado com a senhora. — Envergonhado? Bonitão daquele jeito? — É que ele é a fim da senhora. — Sério mesmo, Friederic? — Amanhã ele vai estar aqui nessa mesma hora, aí a senhora fala com ele. — Muito interessante. Mas não vim aqui por esse motivo. Quero saber se você reconhece isso. — Colocou sobre a mesa uma velha mochila esfarrapada, que Friederic reconheceu no ato. Ele mesmo havia dado o objeto de presente à Serafine em seu último aniversário. A menina gostou tanto que ficava andando de cima para baixo com ela. — Lembro sim. — Aqui dentro estão algumas coisas que eram da minha filha. Quero que você fique com elas. Sei que ela também iria querer isso. Vocês eram tão próximos, e sei que fará melhor uso disso aí do que eu. Ele fez menção de abrir a bolsa, mas para diante da recusa dela, que pediu que só o fizesse quando estivesse bem longe dali. Mesmo curioso, conseguiu resistir. Ele cordialmente agradeceu, mas antes de sair, aproximou-se de Friederic e sussurrou: — Mesmo que em seu futuro tenha muita dor e sofrimento, mantenha sempre sua humanidade, pois um dia voce vai ser muito poderoso. — Espere! Quem me disse isso foi… — Preciso ir agora. — Mas o que isso quer dizer? — Quando chegar a hora certa você vai saber. Já incomodei demais. Ela se foi e logo desapareceu na rua. Ele deu uma rápida olhada e apenas viu alguns livros. Já era tarde, precisava ir pra casa. Em casa, Friederic já caia de sono, mas sua curiosidade era maior. Passou um café, catou alguns bolinhos e foi para o quarto com a mochila de Serafine, despejando todo o conteúdo na cama. Boa parte era lixo: pontas de cigarro, um baseado de maconha, embalagens de preservativos, seringas. Havia um livro grande que parecia uma edição não-oficial. Escrito à mão, apresentava vários erros de ortografia, todavia os desenhos que ocupavam algumas páginas inteiras eram impecáveis. Havia gravuras de vários demônios e suas respectivas funções. Aquilo era inacreditável! Não parecia ser de Serafine. Sabia que ela se interessava pelo assunto magia, mas demonologia seria demais até para ela. Mais à frente havia um capítulo inteiro dedicado a um demônio específico: Belial, o pai dos vampiros, como era mencionado. Vampiros? Isso já está ficando esquisito demais, pensava Friederic. Narrava a crônica vampiresca desde a ascensão do rei Leoni V, até seu assassinato orquestrado por seus três filhos, considerados os primeiros vampiros. Em seguida uma gravura do monstro chamado Belial. Uma criatura assustadora, com asas negras, olhos vermelhos como sangue, corpo descomunal, trajando uma espécie de armadura antiga cor de prata. Em outra página havia uma sátira do famoso quadro “A criação do mundo”, de onde aparecia a figura de Belial de um lado e a figura tradicional da morte do outro, com uma inscrição no rodapé da página, “Em honra e glória do grande Belial”, que seus filhos vivam para sempre. A partir daí as informações eram um pouco limitadas. Havia um caderno de capa dura e o que aparentemente seria o achado mais significativo daquele monte de tralhas, o diário de Serafine. Ele seria capaz de cometer as maiores loucuras no passado para pôr as mãos em tão precioso tesouro. Sempre quis saber seus mais íntimos segredos, e agora seria a hora. Começou com o caderno. Fotos. Muitas fotos de pessoas mutiladas. No começo quase jogou o caderno longe, mas sua curiosidade era maior. Continuou. Uma imagem específica chamou-lhe atenção: uma mulher pendurada de ponta cabeça. Suas mãos e pés estavam amarradas, aparentemente com arame farpado, e haviam estacas cravadas em suas mãos. Estava nua e banhada em sangue. Em outra gravura um homem segurava uma menina pelas mãos. Ela parecia com medo enquanto um outro brandia uma espada em sua direção. Na sequência os corpos da mulher e da menina jaziam ao chão como ordinários pedaços de carne sem serventia. Provavelmente eram mãe e filha. O estômago de Friederic revirou e se não fosse chegar ao banheiro rápido, teria vomitado no chão mesmo. Meu Deus, em que você se meteu, Serafine? O que você fez? Ele tremia com a idéia de pensar que a menina tivesse tomado parte naquele horror. Mas seus temores estavam longe de ter um fim. Em outra imagem um homem segurava uma mulher, provavelmente morta, em seus braços. Ela tinha o seio à mostra e um ferimento na altura do pescoço. Não era possível. Não poderia ser ela. Seus olhos deveriam estar lhe pregando uma peça. Ao fundo conseguia discernir a figura de Serafine, com seu vestido negro, encostada em uma parede conversando com um cara. Em outra imagem daquele álbum sombrio, um sujeito empunhava uma espada ensopada em sangue. O sujeito mais uma vez. Friederic pensava estar delirando: era Gerard, vocalista do Black Santuary. Mais a seguir, Serafine nua enquanto Gerard a acariciava com as mãos sujas de sangue. Satanistas. A banda sempre teve uma fama que seus integrantes faziam questao de alimentar. Eles se diziam satanistas e alegavam terem feito pacto com um demônio em nome do sucesso, mas até então eram lendas. Friederic sempre fora um dos muitos fãs da banda por causa do tipo de música que eles faziam, mesmo após a mudança de formação, quando Gerard tornou-se o vocalista. Em outras imagens conseguiu reconhecer os outros músicos da banda, então não haveria mais dúvida: aquela noite Serafine fora encontrar Gerard, logo devia ser ele seu namorado, e possível assassino. Algumas anotações atribuíam os sacrifícios em honra ao demônio Belial, que os músicos referiam a si próprios como filhos dessa criatura. O diário deveria ter alguma coisa a mais, que explicaria essas atrocidades. A vida de Serafine era sempre cheia de loucuras e desgraças, mas sabia que ela gostava de anotar tudo. 03 de Janeiro - Saída da clínica de reabilitação; 10 de Janeiro - Fui presa de novo. Um tira sem senso de humor me levou em cana por causa de um baseado; 01 de Fevereiro - Noite de sexo selvagem com Gerard; Mas que merda! Eu não preciso saber disso, resmungava Friederic. Ignorou alguns detalhes mais sórdidos que ele não tinha interesse, como uma orgia que ela relatava mais a seguir, porém alguns outros detalhes mais notáveis começaram a fazer sentido e dar um segmento àquele circo de horrores. 01 de Março - Esperei desde o inicio da noite que Gerard e os outros aparecessem. Logo depois fomos ao local do sacrifício. Meu Deus! Ainda não acredito nisso. Desde sempre fui contra isso, mas ele dizia apenas querer varrer os pecadores indignos e impuros do mundo. Apaixonada, eu aceitei fazer parte daquele horror, mas apenas ficaria olhando, pois não tinha coragem de matar ninguém. Sujei minhas mãos de sangue e enquanto ajudava a limpar a bagunça, desmaiei; 04 de Abril - Ainda não consigo esquecer-me daquele dia. A mãe e a filha que os caras mataram. Gerard disse que a mulher era infiel e não merecia viver, e a criança era fruto do pecado. Não vi nenhum pecado que elas tenham cometido para merecer aquela morte horrível. Pecadoras? Acho que nós somos os pecadores; 07 de Abril - Enquanto eles faziam um show, entrei escondida na van do Gerard. Não sei porque ele nunca deixava eu entrar lá sozinha. Antes eu não fosse tão curiosa. Havia sangue para todo lado. Meus olhos só podiam estar me enganando. Eu vi uma garota caida no chão. Cheguei perto e ela tinha uma marca de mordida no pescoço. Procurei em uma gaveta alguma coisa que eu pudesse fazer um curativo nela. Encontrei um livro muito esquisito e perturbador. Acho que a garota estava morta. Com medo saí dali, levando o tal livro; 20 de Abril - Cobrei explicações, mas Gerard disse que foi um dos caras da banda. Mesmo que eu esteja ficando louca, meu namorado é um vampiro assassino, pelo menos eu acho. Temo por minha vida e minha sanidade, se não soubesse que não vivo mais a fantasia da infância. Pesquisei sobre o tal livro e acho que tenho em minhas mãos o Livro dos Vampiros; 30 de Abril - Eu não aguento mais. Gerard só pensa em matar. Acho que agora ele está ficando louco, dizendo que representa um dos braços da Nova Ordem. Nova Ordem? Mas que porra é essa? 01 de Maio - Gerard me ofereceu o que ele chama de presente das trevas. Disse que vai me tornar igual a ele. Não sei porque acho que os outros queriam que ele me matasse. Dizem que vou traí-lo porque sou indigna. Mesmo assim ele ainda me protege. Mesmo morrendo de medo, aceitei só para ver como era. Aqueles dentes enormes, os olhos vermelhos. Ele disse que me transformaria e eu seria dele para sempre. Eu vi um dos caras matando uma garota. Ele mordeu o pescoço dela, jorrando sangue para todo lado. Eu não consegui deixá-lo me morder. Não tive coragem. Era demais para mim, então fugi; 05 de Maio - Gerard tem me procurado por todos os lugares, mas vou fugir dele até não poder mais. Ainda sou apaixonada, mas não posso amar um vampiro assassino e sanguinário. Não sei se ele está atrás de mim ou do livro que peguei dele; Friederic largou o diário e voltou ao livro. Havia mais fotos que ele se recusara a continuar vislumbrando. Havia pelo menos mais algumas em que Serafine aparecia de expectadora. Talvez a pior seja a que Gerard aparece com todos os integrantes da banda. Ele tem uma cabeça na mão, possivelmente de uma mulher, por causa dos cabelos longos. Serafine aparece ao fundo da foto, com uma enorme faca suja de sangue, provavelmente a arma do crime. Imaginou por um momento os horrores que ela havia presenciado, mas em seu íntimo preferia acreditar que ela realmente não tivesse participado mesmo de nada daquilo. E o quão cruel deve ter sido sua morte. Tentou esquecer aquilo tudo, mas seria impossível. Voltou à mochila, havia um monte de panos velhos com alguma coisa enroladas. Desembrulhou, era um punhal de prata, que deve ter sido utilizado em sacrifícios, ou melhor, assassinatos. Serafine roubara o artefato, e provavelmente isso custou sua vida. Encontrou um pingente, um pentagrama que ela sempre usava, pegando-os para si. Juntou tudo na velha mochila poída, jogou tudo pra debaixo da cama e sorveu o último gole do café gelado. Aquilo era loucura demais para ele digerir. Serafine, vampiros, sacrifícios, Black Santuary. Finalmente permitiu-se relaxar e o sono o derrubou com a sutileza de um bate-estaca. Luna tentava entender um pouco do recente distanciamento de Friederic. Era como se ele procurasse mil e uma desculpas para não sair nem estar com mais ninguém. Até Marius havia notado que o amigo não era mais o mesmo, só não entendia o motivo. Fazia tempo que eles não conversavam, ainda mais quando Marius queria saber por que de um tempo para cá a senhora Deverreaux estava lançando-lhe olhares um tanto lascivos. A morte de Serafine ainda perturbava a todos, pois ainda não havia respostas para as milhares de perguntas e a polícia não estava nem perto de desvendar o crime. Friederic não aceitava isso e decidiu por conta própria, investigar a história toda e trazer o assassino, ou os assassinos de Serafine, à justiça. Todos os dias procurava o detetive Samael Baptiste na delegacia, em busca de novidades. O detetive cordialmente agradecia ao rapaz pelo interesse e dizia que a investigação ainda estava em andamento. Inventou de tentar seguir os passos da banda Black Santuary, mas era difícil acompanhá-los, pois não eram do tipo que recebiam fãs. Tentou conversar com alguns amigos que frequentavam o Pig Head, mas ninguém sabia de nada. Abordava algumas pessoas nas ruas, tentou infiltrar-se, na cara de pau, em uma apresentação do Black Santuary, mas foi expulso por um dos integrantes, que o reconheceu como penetra. Chegou até a ser denunciado, e o detetive Samael ameaçou prendê-lo se não parasse de atrapalhar sua investigação. Friederic concordou em compartilhar algumas informações complementares, desde que o detetive o mantivesse atualizado de qualquer informação sobre o caso. Contou sobre Gerard, os músicos e a relação com alguns assassinatos misteriosos que estavam acontecendo. Procurou ocultar o culto ao vampirismo por parte dos músicos, pois as informações que dispensara ao detetive já eram mais que suficientes. Mesmo assim ainda continuou com suas buscas, encarnando assim, uma versão pra lá de amadora do famoso personagem Sherlock Holmes. Três meses haviam se passado e suas investigações já mostravam os sinais de fracasso. Sem contar que havia parado sua vida em decorrência disso. Luna sempre o procurava, mas ele estava ocupado demais com alguma coisa, e Marius aproveitou-se disso para aproximar-se da menina, que em protesto a indiferença de Friederic, começou a namorá-lo, mesmo não tendo o mesmo sentimento. Ela amava Friederic em segredo, mas ambos eram como crianças que nunca encontravam coragem para assumir. Ele naturalmente ficou enfurecido ao saber disso. Marius estava ciente, mas procurava não tocar no assunto, pois sempre fora a fim de Luna, e queria despertar nela o amor que sabia que nunca seria seu. Portava-se como o perfeito cavalheiro enquanto estavam juntos. Atencioso, gentil e bem educado. Desejava levá-la pra cama de todas as formas. Seu desejo confundia-se com seu sentimento, geralmente fazendo-o perder-se entre os dois. Por mais que gostasse da companhia de Marius, pois ele sempre fora o mais engraçado da turma, era Friederic que ela desejava. E assim os dias foram arrastando-se, como as correntes de um fantasma errante que assombra as velhas casas, e cada um sofria a seu modo peculiar. Friederic e Marius mal se viam ou se falavam. Perto dali, a senhora Deverreaux voltava pra casa quando teve a nítida sensação de estar sendo seguida, observada. Tentou convencer a si mesma que não era nada e continuou no caminho de casa. — Elisa. — Ouviu alguém gritando seu nome ao longe. — Elisa. — Procurou mais uma vez, não vendo ninguém próximo. — Elisa. — A voz desconhecida parecia estar mais perto. Sentiu um vento gelado descer pela sua espinha, suas pernas já não conseguiam mais obedecer a seu desejo de sair correndo dali. Era tarde da noite, então se gritasse, talvez ninguém viesse em seu socorro. Tentou disparar na corrida e ouviu passos perto de si, parecendo que alguém passara por ela, mas não via nada. — Meu Deus, o que está acontecendo? — dizia em voz alta, numa tentativa infrutífera de fazer o autor daquela traquinagem mostrar-se a ela. — Isso não tem graça. Quem é você? Mais uma vez alguém passou muito rápido a seu lado, mas desta vez ela sentiu uma mão acertar-lhe um tapa no rosto. Começou a rezar. Já estava perto de casa, talvez seus vizinhos estivessem ainda acordados. Correu, porém mais um tapa lhe acertou, fazendo-a cair no chão. Começou a chorar, pedindo aos céus que a livrassem de todo o mal. — Acho que é um pouco tarde pra isso, bruxa velha. Virou-se e deu de cara com um sujeito assustador em sua frente. Ele tinha olhos vermelhos e uma expressão ameaçadora. Era Gerard. — Achou que fosse fugir de mim? Ela gritou e correu. Após uma certa distância, olhou pra trás e ele já não estava mais a observá-la. — Elisaaaaa… — A voz era quase melódica, mesmo ele sendo cantor de um gênero de música agressiva. Ela descontrolou-se e começou a chorar. Pedia para que ele a deixasse em paz, que não tinha nada do que ele queria. — Elisaaaa… Finalmente, em frente à porta de sua casa, estava salva. Em sua fortaleza nenhum demônio entraria. Antes de alcançar a entrada de seu templo, seu agressor puxou-a pelos cabelos e bateu sua cabeça contra a parede lateral da casa. — Está uma bela noite, não acha, Elisa? — Me solta, seu demônio. O que você quer comigo? Eu não tenho nada. — Você sabe. Eu quero o que a vadia da sua filha roubou de mim. — Então foi você quem matou minha filha, seu desgraçado? — Eu dei a ela o descanso eterno. — Pressionou Elisa contra a parede, passou sua unha comprida no rosto dela, fazendo escorrer um discreto filete de sangue. — Eu quero as coisas que Serafine pegou de mim. — Eu não sei o que ela pegou de você. — Podemos fazer isso do jeito fácil, Elisa. — Eu não… Um tapa fez Elisa perder a fala. Em seguida um soco de mão fechada jogou a pobre mulher contra o chão. Ensanguentada ela ainda tentou levantar-se e correr para dentro de casa. Gerard a segurou pelo pescoço, erguendo Elisa acima de si. Agora sua falsa cortesia caira por terra. — Sua vadia velha, eu quero agora as coisas que sua filha roubou de mim. Agora. — Mostrou seus dentes pontiagudos. Ela chorou mais uma vez. — Você já me fez perder muito tempo. Ele podia ver o medo e o terror nos olhos dela, e parecia gostar disso. Começou a rezar, e isso aparentemente o incomodava. Jogou-a mais uma vez contra o chão e passou a pisar em seu rosto com violência. Aproximouse, e ela mesmo caída, ainda cuspiu no rosto de seu agressor, sujando-lhe de sangue. Enfurecido, Gerard agarrou seu pescoço, cravou-lhe as presas, sorvendo até sua última gota de sangue. Enquanto sua vida escorria junto com seu sangue, Elisa sorriu, como não fazia desde a morte de Serafine. Finalmente as duas estariam juntas novamente. Naquela manhã, Luna rolava de um lado para o outro da cama. Já não tinha mais sono, mas sua preguiça sempre a fazia ficar mais tempo na cama. Não se lembrara de deixar a janela aberta. Quando fez menção de levantar-se, Marius a observava, sentado em uma cadeira de frente para sua cama. Ela quase gritou com o susto, mas ele foi mais rápido, levantando e fechando a boca dela para evitar o alarde. — Como foi que você entrou aqui? — Ainda tonta de sono, esbravejava com ele pela ousadia. — Estamos no segundo andar. — Relaxa, garotinha. Você sabe que eu posso entrar em qualquer lugar. — Mas ainda é o segundo andar. — Eu tenho meus métodos. Te trouxe um presente. — Colocou sobre a cama uma caixa de chocolates de vários tipos e sabores exóticos. Alguns com recheio de licor, outros de frutas com várias combinações. A caixa era em formato de coração, com um embrulho mal feito e amassado, mas sabia que ele tivera boa intenção. Antes que ele falasse dos doces, ela abriu a embalagem de qualquer jeito e meteu dois dentro da boca. Enquanto saboreava, tentava agradecer. Gulosa como ela só, não sabia se falava ou comia. — Acho que você gostou mesmo — comentou ele. — Adorei. Muito obrigada, Marius. Ela deu-lhe um longo beijo de agradecimento, fazendo com que Marius se aproveitasse, passando a mão por seu rosto e descendo para tentar acariciar seus seios. Por apenas alguns segundos ela permitiu. Excitado, tentou deitá-la na cama, onde continuaram os beijos. Ele deslizou a mão pelas costas dela, na tentativa de levantar sua blusa. — Não, Marius. Eu não estou pronta. — Pensei que você estivesse curtindo. — Eu quero sim, mas não agora. Espero que você respeite isso. — Levantou-se da cama, deixando o excitado Marius sentado com olhar de súplica. — Sei que é difícil pra você, mas ainda não posso. — Eu sei, você é virgem. Mas sabe que eu a amo, e te quero muito. — Assim você faz com que eu pareça uma quadrada que tem medo de ir pra cama. — Acariciou seu rosto levemente. — Eu gosto muito de você, mas ainda não me sinto à vontade. De repente alguém bateu à porta, interrompendo aquele monólogo interessante. — Meu pai! Se esconde rápido, vai. — Ela empurrou Marius para trás das cortinas da janela e voltou para cama, cobrindo-se. — Luna, está acordada, filha? — Alguém chamava do outro lado. — Filha, você está bem? — Pode entrar, pai — disse, fingindo voz de sono para simular ter sido acordada. — Está tudo bem aí? — Seu pai entrou no quarto, olhando para os lados, como se soubesse que havia alguém ali. — O vizinho da casa debaixo disse que viu um sujeito estranho rondando por aqui. Você viu alguma coisa? — Não vi nada, pai. — Simulou um bocejo e esfregou os olhos, como alguém que acorda a contragosto. Ele andou pelo quarto, foi até a janela e com um puxão afastou a cortina vermelha que ía até o chão, mas não havia ninguém lá. — De qualquer jeito, mantenha os olhos abertos, minha filha. Pode voltar a dormir. Saiu e quando fechou a porta atrás de si, Luna respirou aliviada. Seu coração quase saiu pela boca quando o pai aproximou-se da janela. Aguardou mais alguns segundos e quando foi até janela, pôde ver Marius descendo pelo telhado da varanda da casa abaixo. Dessa vez foi por um triz. Luna sabia que Marius não queria romance e sim levá-la pra cama. Às vezes, só às vezes, pensava em tentar amá-lo, mas sentia falta de Friederic. Mesmo com todo seu orgulho, decidiu confrontá-lo. Ele não podia ignorá-la desta forma. Somente ela podia fazer isso. Naquela mesma noite foi até o La Verrie. Sentou-se em uma das mesas, pois ele teria que vir atendê-la de qualquer jeito. — Friederic, estou morrendo de fome — dizia ela, próxima ao balcão. — Você bem que podia me servir aquele croissant com café que sempre traz pra mim, não é? Nenhuma resposta. — Friederic, eu tô com fome. Ele pediu para um colega atender a “cliente faminta’’. — Friederic Pontmercy, eu quero falar com você. — Tô ocupado agora. — Sequer levantou a cabeça, enquanto servia um café na mesa ao lado. — Outra hora conversamos. — Eu quero falar agora. — Seguiu ele até o balcão, segurou seu braço com força, fazendo-o parar. — Me diz agora porque você está me ignorando desse jeito. O que eu te fiz, ou Marius? — Marius... E por falar nisso, por que ele não está com você agora? — Qual é o seu problema, Friederic? — Tô trabalhando demais e não tenho tempo para ficar batendo palmas para a comédia pastelão que você chama de romance. Vocês são o meu problema. O casal feliz. — Deixa pra lá. Achei que você fosse mais homem pra enfrentar seus problemas. — Largou o braço dele e bateu os calcanhares pra sair. — Luna, espera — pediu Friederic. — Agora sou eu que não quero mais te ouvir. — Espera, vamos conversar. — Acha que só você tem problemas? — Os seus não são piores que os meus. Acredite. — Isso não te dá o direito de ignorar todo mundo. Marius sente sua falta e eu também. — Não tenho tido os melhores dias. Essa investigação está me… — Espera aí! Eu ouvi investigação? O que você anda aprontando? — Acho que falei demais. — E pode continuar falando. — É sobre a Serafine. — O que tem ela? — É uma longa história. — Eu tenho tempo. — Não vou contar aqui. Pode passar em minha casa no fim do dia? — Não posso. Vou sair com Marius. — Quer saber ou não? — Mas que merda, Friederic. Você sabe que sou curiosa. Me conta logo. — Se quiser saber, vai ter que ser hoje à noite. — Ahhhh, tá bom! Me encontra no Parque Le Flayre. Às oito da noite. — Mas por que lá? — É caminho. Conversamos e depois vou encontrar com o Marius. — Tá bom. Te espero lá. Por alguns momentos ainda ficou sentindo no ar o perfume que ela deixou pra trás quando saiu, e isso o fazia sonhar acordado com um dia em que tivesse Luna em seus braços. Mas agora era Marius quem desfrutava desses momentos, e por mais que fosse apaixonado, não poderia arriscar uma amizade tão antiga. Nove da noite e Luna ainda com sua falta de pontualidade britânica. Enquanto aguardava, Friederic via os casais indo e vindo. Por um momento sentiu-se solitário. Ahhh, os casais! Como ele invejava os enamorados passeando de mãos dadas enquanto trocavam juras de amor inspiradas pelo ambiente romântico do parque, que hoje nem de longe lembrava o que era antigamente. Outrora fora um espaço sujo e fedido, infestado de vagabundos, prostitutas e toda a espécie varrida debaixo do tapete da sociedade. A lei não existia e sobrevivia o mais forte, ou o mais esperto. Até que misteriosos assassinatos começaram a acontecer. Toda noite, pelos menos dois ou três eram encontrados sem sangue, ou com as gargantas dilaceradas. Os vagabundos em pânico começaram a migrar para outros lugares. A prefeitura limpou, reformou, plantou árvores. Um chafariz com a estátua de um anjo foi erguido no centro do parque, pois os mais antigos ainda diziam que o lugar era amaldiçoado, pois muito sangue fora derramado ali. Hoje é quase um pedaço dos Elisios, o paraíso grego reservado aos justos e bons de coração. E lá vinha Luna, com sua silhueta inconfundível, mais atrasada ainda. — Demorei muito? — perguntou ela, meio sem graça. — Que nada. Estava distraído e nem percebi a hora passar. — Mentira. Ele estava a ponto de xingá-la. — Cheguei há pouco tempo. — Me desculpe o jeito que eu tratei você hoje mais cedo. Eu sei que não tinha esse direito. — Deixa pra lá. Você nunca foi um exemplo de boa educação mesmo. — Porra, cara, eu já pedi desculpas. — Ninguém é perfeito. — O que você ia contar da Serafine? Friederic começou a tecer o rosário. Começou com seu último encontro com a falecida, desde o presente da histérica Elisa; seu encontro com um dos músicos, que ele descobriu ser Gerard; o diário de Serafine e as outras coisas. Optou por ocultar a parte dos vampiros, pois ele mesmo procurava convencer a si mesmo que aquilo era loucura; e os assassinatos. Luna ouvia com a atenção de uma criança que ouve uma história agradável, mas essa seria cheia de monstros e sem final feliz. Ela estava horrorizada e ordenou que Friederic entregasse as provas à polícia o mais rápido possível. E que parasse com essa história de investigação, pois poderia ser preso ou morto por ficar bisbilhotando por aí. Mas ele estava irredutível. Não entregaria o diário de Serafine, pois era a única lembrança que teria dela. Uma discussão começou, com Luna acusando Friederic de ser louco. Ele a chamava de egoísta e acusava-lhe de não se importar com ninguém. E assim os dois trocavam acusações. Cada um atribuindo ao outro seus próprios defeitos. Como um casal normal. Enquanto ela grasnava, Friederic teve a impressão de ter ouvido algo ao longe. Por um segundo estava alheio a tudo e nem ouvia quase o que Luna berrava. Pareciam tiros, mas não vira ninguém correndo. — Ouviu isso? — perguntou ele. — Não ouvi nada. E não mude de assunto. — Mas o que você dizia mesmo? Desculpe, alguma coisa tirou minha atenção. Dessa vez ouviu o estalo mais próximo. Não seria possível que ela não ouvisse também. Tornou-se mais perto, até que viu o exato momento em que a estátua do anjo foi atingida por alguma coisa. Olhou para a direção do fim do parque. Viu claramente um homem sentando em um banco de cimento, parecendo fugir de alguém. Friederic apontava, mas Luna dizia não enxergar nada. Inacreditável! Foi quando ele focou a visão e percebeu o quão longe estava a cena, mas não entendia como ele podia enxergar. De repente um homem aproximou-se daquele que estava sentado no banco apontou uma arma, o outro desvencilhou-se como se possuísse sentidos aguçados. Começaram a lutar. Friederic gritava, apontava, mas Luna ainda parecia não ver nada. O agressor retomou a arma que o outro derrubara e atirou à queima roupa contra seu alvo. Movia-se rápido demais para alguém aparentemente ferido. Conseguiu derrubá-lo com um golpe e começou a contorcer-se, como se tentando alguma reação, mas nada aconteceu. Enquanto seu oponente recompunha-se, disparou na corrida. Tiros, agora na direção de Friederic e Luna, fazendo a lâmpada do poste acima deles estourar. — O que esta acontecendo, Friederic? — berrou Luna. — Eu que não vou ficar pra descobrir. — E ele foi puxando Luna pelos braços, quando os tiros começaram a criar pânico. As pessoas corriam, uma mulher foi alvejada pelas costas e caiu para o lado, onde a dupla tentava correr. — Confia em mim — pediu Friederic. Ele a puxou pelo braço e abrigaram-se atrás de um trailer de lanches que já estava fechado, bem a tempo de sentirem os tiros batendo na lateral da estrutura metálica. Luna se desesperou. O homem ferido corria, desviando das investidas de seu agressor, mas um tiro mais preciso encontrou suas costas, provocando uma queda desordenada, fazendo-o deparar-se com o esconderijo improvisado da dupla. Eles olhavam de soslaio a cena e viram o homem perto. Não sabiam se estava morto, mas para a surpresa dos dois, ele ainda se mexia. Parecia ser de meia idade, vestia-se esportivamente, os cabelos negros e desgrenhados. No momento que pensaram sair dali, aproximou-se um homem com uma arma na mão, que parecia bem mais jovem, vestido socialmente, como um empresário. Cantarolava alguma coisa que eles não entendiam, e a passos lentos continuavam a observar sua vítima. — Foi fácil demais. Confesso que esperava mais — exclamou ele. — Decepcionado, mercenário? Jogue sua arma no chão e lute de igual pra igual comigo — desafiou o homem ferido. — Achei que teria mais trabalho caçando os terríveis Filhos da Lua, mas acho que era só fama. — Vocês acham que são a espécie dominante? Vocês não são nada perto de nós. Enquanto um lobo ainda caminhar nessa terra, vampiros de merda como você cairão pela força de nossas garras. Vampiros. Friederic começara a absorver esse conceito. Seriam eles vampiros? Estaria ele no meio de um conflito de raças? “Enquanto um lobo ainda caminhar nesta terra’’. Tapava a boca de Luna, que tentava libertar-se. Mas ele não poderia arriscar a vida da menina. Mesmo que os dois fossem apenas loucos, ainda sim eram testemunhas de um possível assassinato. — Mesmo morrendo, ainda me desafia. Pessoalmente sua coragem é admirável, mas negócios são negócios. — Por que não luta comigo? — Admirável. — O vampiro reconhecia o valor de seu oponente. Por um momento sentiu-se tentado a jogar a arma no chão e lutar. — Seria muito bom para minha reputação matar um lobo com as mãos limpas. — Os lobos foram feitos pra guerra. E você? Foi feito para quê? Seu rato! Depois daqui você vai voltar correndo para o seu mestre e lamber a bunda dele? O vampiro enfureceu-se com a provocação. Seus olhos avermelharam-se, mostrou seus dentes como uma fera que prepara um ataque, apontou a arma, puxou o gatilho. Click, Click. Sua arma não disparava, a munição acabara. Desperdiçara tudo na perseguição de seu alvo. Não por imperícia, mas pelo fato de os lobisomens serem exímios corredores, mesmo na forma humana. Precisava pensar rápido. O homem tentou levantar e se ele conseguisse transformar-se, mesmo gravemente ferido, seria um adversário deveras perigoso. Antes de conseguir ficar de pé, um golpe violento o jogou pra longe. Enquanto caído, tornou-se alvo de vários chutes. — Lobisomem desgraçado. Por que não morre de uma vez? — bradava o vampiro. Arrancou um galho mais grosso de uma árvore próxima, com um golpe improvisou uma estaca. — Acho que isso deve dar um jeito. Empalado como vampiro, deve ser desonroso morrer assim, não é? Quando preparava o golpe de misericórdia contra seu oponente, ouviu um barulho. No ápice da confusão, Luna e Friederic tentavam sair de cena, mas o vampiro os surpreendeu. Luna gritou, e logo aquele estranho sujeito estava de frente a dupla. — Olha só o que temos aqui. — Olhava para Luna com aqueles olhos vermelhos, o que fazia a menina tremer de medo. — Acho que o casal estava no lugar errado e na hora errada. — Olha, cara, nós só queremos sair daqui — disse Friederic. Por mais que um lado seu estivesse morrendo de medo, o outro estava disposto a lutar se preciso fosse. — Deixa-a ir. — Veja só que romântico. Mas acho que vou ficar com essa gracinha aqui. — Apontava para Luna e em seguida passou a mão em seu rosto. — Tira a mão dela, cara — ordenou Friederic, dando um tapa na mão do vampiro, que respondeu com outro tapa que jogou Friederic longe. — Corajoso seu namorado, menina. Primeiro vou me divertir com você, depois cuido dele. Segurou Luna pela cintura, puxando-a para perto de si. Ela vislumbrou aqueles olhos vermelhos que a encheram de pânico. Implorava para que a deixasse ir. Ele dizia que ía transformá-la para que fosse sua para sempre. — Lunaaaaaa — Friederic berrava, correndo em sua direção. — Seu namorado quer participar da nossa festinha — ironizava o sujeito. Largou Luna um instante e quando menos percebeu, levou um golpe que o fez rolar pela grama do parque. Tanto ele quanto Friederic não entendiam como aquilo acontecera. Muito mais furioso do que surpreso, o vampiro levantou-se ainda tonto e partiu pra cima de Friederic, que reagiu quase à altura, defendendo-se, até levar um chute e parar perto de uma árvore. Sangrava por causa de um corte na testa. Levantou-se com dificuldade, querendo lutar. O vampiro conseguiu alcançar Luna na corrida e a agarrou pelos cabelos. Tentou beijá-la à força. Ela, num rompante de reflexo e coragem, acertou um soco em seu rosto. Com seu anel adornado de caveiras conseguiu perfurar sua pele, fazendo-o sangrar copiosamente. — Sua vadia, eu vou te matar. — Com um tapa jogou a menina no chão. Agora não queria mais diversão e sim matá-la por tamanha ousadia. — Você cometeu o pior erro de sua vida. Friederic acertou mais uma vez seu oponente, afastando-o por alguns segundos e pondo-se entre os dois. — Moleque desgraçado. Como você faz isso? Quem é você? — indagava, sem entender como um simples moleque conseguira acertá-lo duas vezes. — Sai de perto dela — ordenou Friederic. — Eu vou matar você e trepar com ela em cima do seu cadáver. Moleque insolente. Como se atreve a me enfrentar? — Pode me matar, se quiser. Mas dou minha vida, se for preciso, para defender aquela que amo. Aquelas palavras foram como fogo queimando Luna por dentro. Sua alma entrava em êxtase com o que acabara de ouvir. O vampiro segurou Friederic pelo pescoço. — Então vou matar o casal apaixonado de uma vez só — declarou ele, em tom de escárnio. — Mas algo de estranho aconteceu: as mãos do vampiro estavam sujas de seu próprio sangue, e quando atacou Friederic, seu sangue misturou-se ao do ferimento da testa dele. Uma espécie de fumaça começou a emanar do sangue dos dois, como uma reação que ocorre quando dois elementos químicos se encontram. Largou Friederic, que caiu como uma pedra no chão. — Então é isso? Por isso você conseguiu me derrubar — agora falava num tom quase melódico. — Acho que voce não sabe, não é? Então vou matá-lo antes que se transforme. Te farei esse favor, antes que enlouqueça. — Do que você está falando? — Acho mesmo que você não sabe. Friederic observou ao redor, não sabendo por que seus olhos procuravam o homem caído, e para sua surpresa, ele não estava mais lá. Tentava entender aquela reação esquisita que acontecera quando o sangue de ambos se misturou, e seja lá o que fosse, ardia muito. Luna desmaiou quando viu o homem com o pescoço de Friederic entre as mãos. — Eu acho, por mais que esteja raro hoje em dia, que você é um puro sangue, garoto. — Eu não sei do que você está falando. — Não interessa. Vai morrer antes de se tornar um lobo completo. — Avançou e fez menção de atacar Friederic. — Mão na cabeça — uma voz desconhecida ordenou que parasse. Virou-se e dois policiais com armas apontadas aproximavam-se. — Fiquem onde estão — ordenou o que parecia ser o mais novo da dupla. O mais velho chegou perto de Friederic e começou a revista-lo e fazer perguntas. O outro aproximou-se do vampiro, tentando força-lo a falar. Friederic contou que o estranho atacara ele e a menina que estava desmaiada. Apontou para a arma que estava no chão. Enquanto o policial fazia as perguntas, mais uma vez seus olhos vislumbraram a cena mais dantesca da noite: o corpo da mulher que fora alvejada e caira a uma certa distância estava sendo arrastado discretamente para trás de uma moita próxima. Preferiu ignorar o que vira. O policial acordou Luna, e estranhamente, mandou que a dupla saisse dali, e deixassem que eles resolvessem tudo. Mesmo querendo registrar queixa, foram convidados pelo policial mais velho a se retirarem. O vampiro mantinha-se de costas para o outro policial que tentava abordá-lo. — Eu mandei você se virar. Por acaso você e surdo? — Tentou viralo à força, mas quando vislumbrou os olhos vermelhos e os dentes pontiagudos daquele homem que ostentava um sorriso diabólico, começou a balbuciar. Deu dois passos pra trás, com medo. — Ai, meu Deus! — exclamou. Antes que pudesse afastar-se, o vampiro cravou as unhas em seu pescoço, em seguida suas presas. O policial gritava enquanto seu sangue era usurpado por aquele monstro. O outro policial ordenou que ele parasse. Mesmo indefeso, conseguiu acertar um tiro na barriga do vampiro, mas este desarmou sua vítima apenas com um golpe de sua mão livre. Era como se aquele tiro fosse apenas um inconveniente rapidamente resolvido. Largou o policial no chão, que agora agonizava, agarrando-se ao que lhe restava de vida. Seu parceiro tentou socorrê-lo, mas agora só restava rezar pela alma do colega. Fechou os olhos dele, que morrera olhando para o céu. — Mas que merda, Philip — o policial esbravejava com o vampiro. — Ele era inocente e não tinha nada a ver com essa guerra de merda de vocês. — Foi mal, Nathan. Não sabia que o tira era seu namorado. Considere apenas como um dano colateral. — Vai se foder, cara. Dano colateral é o caralho. Não é matando um inocente que você vai melhorar as coisas. Seu merda! Aposto que nem conseguiu matar o lobo. — Claro que eu matei. Está bem ali no... — Nem pra isso você serve, cara. — Relaxa aí, cara. Não esquece que você é só um agente, e apenas isso. Além do mais, o lobo está ferido, então não será difícil pegá-lo. — Já chega! Não me interessa mais nada disso. — Bem que eu sempre soube que você era um covarde mesmo. Então acho que seus serviços não serão mais necessários. — Aproximou-se do policial. Este, calmamente tirou de um dos bolsos um carregador com munição de prata, colocou em sua arma, engatilhou e apontou para o vampiro. — Vai me matar, agente Nathan? — brincava ele. — Não vou te matar, Philip. Só vou ganhar tempo. Sem prévio aviso, atirou contra o peito de Philip. Ele caiu de joelhos espraguejando, com sangue escorrendo pela boca. A prata não o mataria, apenas feria-o gravemente. O policial sempre portava esse tipo de armamento, pois como trabalhava para os vampiros, consequentemente poderia ser vítima de algum ataque de lobos. — Seu desgraçado filho da puta. Como se atreve a atirar em mim? Eu vou matar você! Um rosnado fez com que se calasse. Ele conhecia bem aquele som. — Nathan, o lobo está aqui — dizia Philip. Uma sombra negra surgiu ao lado do agente Nathan, que ainda apontava a arma. Philip esfregou os olhos. Era o lobo que ele caçava, sobrevivera e conseguira transformar-se, agora estava ali, quase diante de seus olhos. Seus olhos eram amarelos como a lua cheia, seu pelo negro como a noite. Mesmo sobre as quatro patas, era do tamanho do agente Nathan. Philip com muito esforço levantara-se. O lobo olhou nos olhos do agente, que parecia não temê-lo. — Nós lutamos nessa guerra em lados diferentes, mas esta noite temos um inimigo em comum. Ele é todo seu. O lobo avançou, o vampiro arregalou os olhos e desvencilhou-se da primeira investida. Tentou saltar pra cima do lobo, que o derrubou no chão com um potente golpe de uma de suas patas dianteiras. Mesmo ferido, ainda tentava lutar. Tentou um contra-ataque, mas seu braço direito foi devorado pela fera. O lobo estalava a língua nos dentes, como um predador que saboreia o pavor da vítima que esta prestes a ser abatida. O vampiro tentou correr para longe, porém, com um salto o lobo o alcançou. Um novo golpe de sua pata dessa vez imobilizou o caçador, que agora tornara-se a presa. Abriu sua bocarra e cravou nas costelas do vampiro. O policial observava, imóvel, a carnificina, enquanto ouvia os gritos de dor e pavor do vampiro, para em seguida vislumbrar Philip ser feito em pedaços diante das garras e presas do lobo. Algumas pessoas foram se aproximando, ainda temerosas e curiosas. O policial viu quando o lobo desapareceu entre as folhagens que davam acesso a um bosque próximo. Pessoas ouviram um uivo que as enchia de pavor. O uivo denotava a satisfação de uma fera que saciara-se com sangue e morte. Alguns rezavam, outros faziam o sinal da cruz, pedindo proteção contra o mau que ainda reinava naquele lugar. Mesmo depois de tantos anos, muito sangue ainda precisaria ser derramado.


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Equipe Spartacus.

 
 
 

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